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Ler e traduzir Igiaba Scego

IGIABA SCEGO é uma das revelações da literatura italiana contemporânea. Jornalista e pesquisadora, colabora com diversos veículos como L’InternazionaleLo stranieroLa Repubblica e L’Unità, além de integrar o grupo de pesquisa de Altos Estudos em Ciências Humanas da Universidade Ca’ Foscari de Veneza. Igiaba esteve no Brasil recentemente como convidada especial da Festa Literária Internacional de Paraty. Junto com o poeta suíço de língua italiana Fabio Pusterla, Igiaba integrou uma das mesas no palco principal da Flip, com mediação da escritora Noemi Jaffe. Traduzi seus três livros publicados no Brasil até agora: o romance Adua (Nós, 2018), o relato autobiográfico Minha casa é onde estou (Nós, 2018) e Caminhando contra o vento (Buzz & Nós, 2018), um ensaio sobre Caetano Veloso, uma de suas grandes paixões.

Igiaba é dona de uma escrita original: o estilo e a forma com que decide abordar os temas que coloca em cena é bastante único, pois consegue variar de um registro de alta erudição da língua italiana e lançar mão, ao mesmo tempo, de uma narrativa que preserva algo da tradição de uma sociedade em que a transmissão oral das histórias é o mais comum, algo que vem de sua origem somali, sobretudo pela parte materna. Mais do que um leitor, as histórias de Igiaba pedem um ouvinte: há sempre alguém para quem a história é contada. Tendo estreado em 2005 com a publicação de Pecore Nere (Laterza, 2008), juntamente com Gabriella Kuruvilla, Laila Wadia e Ingy Mubiayi, Igiaba resgata, com grande maestria literária, o inenarrável da experiência colonialista italiana, permeando suas narrativas com uma parte da história ainda muito suprimida na Itália. Igiaba transita por referências históricas para repensar o presente. Em sua escrita há como que um rio caudaloso e subterrâneo, além da beleza do desencadeamento das orações subjazem questões políticas prementes e feridas não cicatrizadas, por exemplo, o não reconhecimento das atrocidades dos anos em que a Itália dominou a Somália como colônia, ou mesmo o direito de aquisição e exercício da cidadania por parte dos filhos de imigrantes, a questão da lei jus solis — até hoje não reconhecida na Itália — e outros temas particularmente polêmicos na atual conjuntura política italiana, como a reforma da lei de imigração, o livre trânsito entre os países e o fechamento dos portos.

Ainda que pudéssemos dizer que a autora se insere na linhagem da literatura pós-colonial contemporânea, rotulá-la dessa forma seria também reduzir o valor do seu trabalho literário. Podemos pensar numa literatura que se mantém como Jano, com uma face voltada para o passado e a outra não apenas para o futuro mas também para o presente, sem esquecer o processo de colonização, preocupando-se sobretudo com uma contínua descolonização das ideias e dos ideais. Mas a escrita de Igiaba vai sempre um pouco além, pois problematiza todos os vértices, todos os enredos e pontos de vista. Há que observar com atenção a profundidade da pesquisa e a maestria por trás de sua escrita.

A voz narradora dos filhos de imigrantes — ou novos imigrantes — na Europa já é um fato consolidado em outros países, como na França. Nesse sentido, destaco dois escritores recentemente publicados no Brasil: o franco-marroquino Abdellah Taïa, autor do romance epistolar Aquele que é digno de ser amado (Nós, 2018), e a franco-argelina Leila Slimani, cujo romance Canção de ninar (Tusquets, 2018) conquistou o Goncourt (prestigiada premiação literária francesa). Além desses, poderíamos citar ainda Atiq Rahimi que aborda o seu processo de exílio na França egresso do Afeganistão em A balada do cálamo (Estação liberdade, 2017), e Scolastique Mukasonga, que narra a sua trajetória como sobrevivente do genocídio em Ruanda em seus livros Baratas e Nossa Senhora do Nilo (Nós, 2017). Porém, reduzir a produção tão rica e vasta — da qual que esses autores são exemplos — com o rótulo de literatura pós-colonial ou literatura-testemunho certamente seria uma nova forma de reducionismo ou até apagamento.

ADUA

 

Adua, a protagonista do romance homônimo, conta sua história à estátua de elefante esculpida por Bernini, na praça Santa Maria Sopra Minerva, em Roma, ouvinte de pedra que tem sobre si o menor obelisco do mundo. Adua é também o nome da batalha culminante e decisiva da Guerra da Abissínia, travada em 1.° de março de 1896 entre as forças italianas comandadas pelo general Oreste Baratieri e o exército abissínio de negus Menelik II. A derrota italiana nessa guerra manteve suas ambições coloniais no Corno da África adormecidas por muitos anos. A protagonista do romance de Igiaba é uma jovem que emigrou nos anos de 1970 para a Itália, seduzida pelo sonho de se tornar uma diva do cinema como Marilyn Monroe. Porém, as coisas acabaram de forma muito pior para ela. A história do romance divide-se entre as vidas de Adua e de seu pai, conhecido como Zoppe, que serviu aos fascistas italianos como intérprete na década de 1930. Os capítulos alternam-se entre Adua, Zoppe e os “sermões”, ou seja, os pitos que a protagonista recebe do pai. A relação difícil entre os dois é um dos eixos do romance, que fala sobre os corpos e os efeito do colonialismo, da humilhação e dos abusos nesses mesmos corpos: o corpo do pai, o corpo da filha e o corpo de uma personagem que surge mais tarde, Titanic, jovem imigrante, sobrevivente da travessia do Mediterrâneo que acaba se casando com Adua. O leitor vai construindo a trama através da leitura de um relato que ocorre nos anos de 1930 e outro que se passa entre 1960 e 1970, até enfim chegarmos aos dias de hoje. Igiaba olha para a história a partir de personagens que estariam de fato esquecidas se não existissem como parte de sua narrativa: é através deles que compreendemos não somente o drama pessoal de cada um mas neles também identificamos as marcas do tempo, do colonialismo, da política, do machismo e do abuso. Um aspecto fundamental do romance é que não há uma pasteurização do bem e do mal, pois todas as personagens carregam alguma marca que desperta empatia mas também ódio. A própria Roma e também Mogadíscio são personagens do romance. Outro aspecto que se repete tanto em Adua quanto em Minha casa é onde estou é o enxerto de palavras somalis no texto: expressões, nomes de comidas e cantigas, tudo transcrito de acordo com a leitura fonética destas palavras em italiano. Em minhas traduções, optei por preservar esta mesma grafia. No final do romance, há um glossário elaborado pela autora com a explicação da terminologia somali. A linguagem híbrida de Igiaba Scego não se manifesta somente neste recurso, mas também na própria narrativa, que ora se assemelha à narrativa oral, típica dos povos nômades do Corno da África, ora se manifesta com monólogos, diálogos e descrições. Apresentamos aos leitores um trecho do livro:

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Sermão

Fica quieta, Adua. Tire esses cotovelos da mesa. E limpe essa boca suja. As costas retas, pelo amor de Deus. Por que você fica toda envergada? Está com as mãos sujas, lave-as imediatamente se não vai apanhar. Isso é jeito de olhar para o seu pai, Zoppe, sua malcriada? Você é como sua mãe, Asha, a Temerária, aquela safada. Tua mãe, aquela puta, que morreu deixando-me aqui sozinho com o meu amor. Como ousou morrer? Hein? Como ousou? Maldita fêmea! E você? Você também vai morrer? Você tem os olhos iguais aos dela, não suporto isso! Mas você vai ver como eu vou te endireitar. Não estou de brincadeira, tem que andar na linha, mocinha. A música agora mudou, não é como no matagal, quando te mimavam. E, se você não obedecer, você sabe bem o que vai acontecer, não sabe? Pronto, então fique reta com estas costas e por caridade não choramingue. Isso me destrói os tímpanos. Quieta. Isso, fique quieta!

 

MINHA CASA É ONDE ESTOU

 

Este relato autobiográfico publicado em 2010 na Itália venceu o prêmio Mondello 2011. Aqui há algo também presente no romance Adua, pois a narrativa pessoal da autora está sempre em relação com a história — desta vez a história dos seus países, a Itália e a Somália, mas também das suas cidades, Roma e Mogadíscio, além da história da sua família. A obra é dedicada à Somália, “onde quer que ela esteja”, nas palavras da autora. Começa com uma epígrafe de Refugiados, de Nuriddin Farah, na qual se lê: “encontrei minha morada num território de fronteiras incertas, com as quais normalmente defino o país da minha imaginação”. Minha casa é onde estou é um livro denso, com muitas notas históricas e explicativas, mas é também um relato caracterizado por uma beleza insólita. Acompanhamos a narrativa e o desenvolvimento do percurso pessoal de Igiaba em seu processo de individualização, percurso em que faz um acerto de contas com o que significa ser italiana, ser somali e, principalmente, ser o indivíduo único que se é: como inscrever a si mesma em sua própria história. Esta é a busca pela sua morada. O leitor que fruir deste texto e do romance Adua poderá reconhecer as refrações de um no outro, pois há no romance nuances que parecem emergir da experiência pessoal de Igiaba. A história começa com um jantar em família em Londres, na casa de um dos irmãos da autora. Ele e um primo começam a relembrar como era Mogadíscio antes da guerra, começam a desenhar a cidade no papel, e Igiaba vai ajudando e completando com suas lembranças até o momento em que seu sobrinho, muito novinho, pergunta: “Essa também é sua cidade, tia?” O questionamento, aparentemente muito inocente, cria um rombo na escritora. Apresentamos aqui um pequeno trecho deste capítulo:

“É a sua cidade, tia Igiaba?”

Eu não sabia o que responder. A pergunta era repentina. Inesperada. Um contra-ataque. Eu não conseguia voltar para meu meio campo. Embaraço.

Minha mãe balançou a cabeça.

Refletia.

“Não basta” disse quase resmungando.

“O quê?”

“Isso”, respondeu, indicando um ponto entre ela e o horizonte.

“Isso o quê?” perguntei então, um pouco irritada.

Maabka, o mapa”, suas palavras misturavam-se, língua materna e italiano. “Não basta para tornar sua aquela cidade.”

“Não? De verdade?” Eu não sabia se estava fazendo uma pergunta ou uma afirmação.

“Claro que não. Aquela no mapa não é a sua cidade. Não pode mentir para a criança.”

“Não quero mentir para a criança. Não poderia nunca. Mas…”

“Mas…?”

“…”

“Digamos que é minha de certa forma. Mas também não é. Entende, filha?”, ela disse, e depois acariciou-me docemente a cabeça.

Ainda hoje não sei se entendi direito aquelas palavras. Meu rosto se transformou num ponto de interrogação suspenso no vazio.

É a minha cidade?

Ou não é?

Eu estava numa encruzilhada.

Este breve texto, longe de pretender exaurir as questões apresentadas nos livros de Igiaba Scego publicados no Brasil, é antes um convite e um estímulo para que os leitores se aproximem da obra rica e profunda da autora, e para que se coloquem também na encruzilhada, junto à autora, em busca do seu próprio trajeto de leitura.

como citar:  CRICELLI, Francesca. Ler e traduzir Igiaba Scego. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.3, março. 2020.Disponível em:

 https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209907