“Francesca Cricelli e as fendas da criação”. Interview by João Pedro Soares Martins.
Por José Pedro Soares Martins
No final de agosto Francesca Cricelli defende a sua tese de doutorado em línguas e literaturas estrangeiras e tradução na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP. A tese faz uma análise do acervo de cartas do poeta italiano Giuseppe Ungaretti (1888-1970) para seu último amor, Bruna Bianco. Poesia, tradução e pesquisa, juntas, no ofício de Francesca em buscar “uma rota para o labirinto infinito de si”.
Nesta entrevista, ela que já viveu em tantos países, vivenciou tantas experiências e influências, conta como foram os muitos encontros que teve e representaram “a possibilidade de uma expansão”. Comenta seu novo ciclo, na Islândia, faz um breve inventário da literatura nórdica e fala de sua expectativa em ser a poeta homenageada no Poetry Brothel de Reykjavík, no dia 4 de julho. Francesca Cricelli prossegue erguendo, pela palavra, pontes entre línguas e culturas.
Pé de moleque – “M’illumino d’immenso!” Poeta, tradutora, pesquisadora. Como foi a construção dessa mulher múltipla, como exige a complexidade do mundo atual? Quais foram os seus motores intelectuais e afetuosos, suas influências para se tornar uma voz brasileira universal, da imensidão de que fala Ungaretti?
Francesca Cricelli – Querido José, é um grande prazer poder responder às suas perguntas, gosto muito do que acompanho nesta revista, então quero começar agradecendo, é um privilégio poder estar aqui e conversar com você. A construção que espero esteja sempre em ato, até o meu último dia encarnada, é fruto de uma combinação de acasos e planejamentos. Acaso ter nascido onde nasci, na família em que nasci e que me deu a herança de uma vida errante: múltiplas pátrias e línguas. Tive pais muito jovens que me carregaram pelo mundo e com eles fui aprendendo a viver, ler, escrever e sonhar entre Brasil, Itália, Malásia, Índia, Espanha… Como diz meu mestre Ungaretti, sendo “fruto de numerosos enxertos”. Minha ancoragem foi minha língua materna, o português, que se desenvolveu entre as paredes domésticas até meus 24 anos e depois o italiano que carreguei em meus estudos sempre, mesmo crescendo na Malásia. Sou e tenho me tornado o que sou pelos encontros que a vida vem proporcionando: sejam eles físicos ou literários. Um verdadeiro encontro representa a possibilidade de uma expansão.
Meus motores intelectuais foram poetas, desde a juventude, quando fui sequestrada, ainda no colégio em Kuala Lumpur, pela paixão provocada pela leitura de T.S. Eliot, Pavese, Ungaretti, Dante, Emily Dickinson e Walt Whitman, mas também de prosadores como Camus e Joseph Conrad. Eu vivia entre a lusofonia doméstica e a exposição à leitura e às amizades em outras línguas… Fui me criando assim até perceber que só poderia ser quem sou se continuasse a ler, escrever e, mais do que tudo, traduzir. A tradução é a principal ferramenta que tenho para construir pontes e semeaduras entre minhas vivências. Meus motores afetivos para esta construção foram e são tantos. Na juventude, meus professores em Kuala Lumpur. Com eles pude perceber que poesia e literatura falavam da vida de dentro, mas também da história, não se tratava de noções enciclopédicas a serem armazenadas e regurgitadas em troca de notas, mas da possibilidade de traçar uma rota para o labirinto infinito de si. As amizades que fui tecendo nos anos também refletiam essa característica encarnada do encontro. Penso numa citação de Jorge Luis Borges, relembrada estes dias por minha amiga Bianca Dias, em que o escritor argentino diz: “Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto.” Há algo da construção do mundo pela palavra que se assemelha ao traço de uma cartografia, ainda que ilusória, para se chegar do hoje ao amanhã.
Pé de moleque – Por favor, comente um pouco sua trajetória de poeta e tradutora que vive onde seu material, a palavra, está. Na Itália e agora na Islândia. Itália, tão conhecida por nós pelos seus cânones, por sua arte fundamental para o Ocidente. E agora Islândia, cultura e modo de vida completamente desconhecidos para nós, aqui no Sul Tropical. Por que é importante o escritor/tradutor estar lá, no meio do outro lado? E como é ser uma poeta/tradutora de fato internacionalizada?
Francesca Cricelli – Ter reconhecido minha vocação e lutado para viver dela e por ela me apresentou muitos desafios, mas também imensas alegrias. Há pouco, entreguei minha tese de doutorado em línguas e literaturas estrangeiras e tradução na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, e defendo-a em breve, no final de agosto. Minha tese trata do descobrimento de um acervo de cartas de Giuseppe Ungaretti para seu último amor, Bruna Bianco. Descobri, transcrevi e organizei esse acervo, agora traduzido em minha tese, graças também à generosidade de Bruna, que autorizou meu trabalho antes da publicação das mesmas. Pesquisar e escrever essa tese foi a experiência mais radical que já vivi, tanto intelectualmente quanto psiquicamente. Este trabalho me proporcionou um enraizamento no Brasil e em São Paulo por muitos anos. Tenho um amor imenso pela cidade, pelos professores e colegas da Universidade de São Paulo, assim como por todos os amigos do meio literário e poético que pude conhecer e frequentar em mais de uma década vivida na metrópole. Não teria escrito um poema como “Caminha invisível” (Repátria, 2015) sem a vivência do cotidiano paulistano apressado e corrido entre metrôs, ônibus, trens e caminhadas e saltos para fechar as contas do mês, sem o aprendizado que foi lecionar por tantos anos a língua italiana, os laboratórios de poesia e de tradução. Com a conclusão da tese, pude deslocar meu olhar para outros horizontes, abrir meu coração e minha mente para outros encontros. O ofício de tradutora me permite trabalhar de qualquer canto do mundo onde haja uma boa conexão à Internet, acesso a bons dicionários… Mas a paz de espírito também ajuda, pois é necessário uma boa concentração para exercer este ofício. Meu principal eixo de trabalho é a literatura italiana, já traduzi Elena Ferrante (Dias de Abandono, Biblioteca Azul, 2015) e Igiaba Scego (Adua, Minha casa é onde estou e Caminhando contra o vento, Editora Nós, 2018) e agora sigo com mais duas autoras, Lisa Ginzburg e outra… (ainda secreta) a serem entregues em breve às editoras. Além disso há projetos de tradução de poesia tanto do português para o italiano (Hilda Hilst, Leonardo Fróes, Fernando Pessoa) como também no sentido contrário (Maria Borio, Davide Rondoni). Tudo isso se encaixa num horizonte da previsibilidade de uma carreira, aí o planejamento que veio após uma vida vivida sem planejar, mas a vida é o que nos arrebata para além dos planos, é isso ou não é vida. Por bem ou por mal.
Um encontro fundamental traçou outra rota em meu caminho e a partir deste encontro fui aos poucos tentando ajustar o meu destino. No livro Errância (Macondo edições e Sagarana forlag, 2019), contei um pouco sobre minhas andanças pelo mundo, graças à poesia, de 2016 para cá. Nessas andanças, houve a imprevisibilidade islandesa. Conheci o tradutor e editor Luciano Dutra na Flip de 2017, ele traduziu, entre o outros, o poeta e romancista Sjón (amigo e letrista da minha cantora preferida Bjork). Sjón foi convidado oficial da Flip de 2017, ele havia estado há pouco na Galícia num encontro de poesia organizado pela minha amiga poeta Yolanda Castaño, eu mesma estaria na Galícia uns meses mais tarde para uma residência de poetas tradutores. Li sobre o romance Pela boca da baleia daquele autor islandês na Folha de São Paulo e me interessei. Daí, nossos caminhos, os meus e de Luciano, se cruzaram durante uma leitura minha em Paraty, graças a uma amiga em comum. Após esse breve e fugaz encontro, entre muitas traduções, publicações e viagens, decidimos juntar nossos esforços tradutórios sob o mesmo teto, dar espaço ao encontro demorado do amor que requer outro tempo e espaço. Assim, com a entrega da minha tese, decidi começar a aprender uma língua complexa e antiquíssima, o islandês, me fixar na ilha que já amava pelas visitas que fizera e prosseguir minha carreira acadêmica por aqui. Eis que a ilha dos vulcões e geleiras — atravessada pela fenda tectônica que divide a América da Eurásia — se tornou minha morada. Espero, com os anos, poder dominar suficientemente a língua e então também traduzir poesia islandesa contemporânea para o português e para o italiano. Quando traduzo e escrevo, quando pesquiso, encontro um ponto gravitacional, um eixo de equilíbrio e de fertilidade que me auxilia a pensar os mundos interno e externo. A partir dessa abertura, dessa fenda, dessa ferida, começamos a criar. Tenho trabalhado desta forma, embebida pela curiosidade do que ainda está por vir, o porvir. No mundo e em mim, há sempre uma nova possibilidade, uma expansão.
Pé de moleque – “O resto é voo”. Qual a influência que essa vivência de outros países, outras culturas, tem na sua poesia? Em que medida falarmos português de fato é uma barreira ou, pelo contrário, é uma abertura para o mundo, idioma do mar que é o nosso?
Francesca Cricelli – Acho que viver o nosso idioma (e nele viver e criar) é uma grande abertura para o mundo. O português é uma língua belíssima e rica em sua diversidade dentro das fronteiras do que chamamos de lusofonia. Escrever na minha língua materna foi para mim uma conquista, e não um fato óbvio. Comecei escrevendo tanto em português quanto em italiano, me autotraduzindo, mas poderia ter escrito somente em italiano, ou talvez em inglês, tivesse sido outro o meu destino; os atravessamentos biográficos, as erupções imprevisíveis, a vida como de fato se apresenta, tudo isso foi mudando o curso da minha existência e, portanto, da minha escrita. A vida me trouxe de volta ao Brasil. Sinto-me feliz por escrever em português e desejar escrever em português, mesmo sabendo que poderia fazê-lo pelo menos também em italiano. Agora é assim e isso me ancora em mim mesma. Falei um pouco desta experiência na revista Pessoa, na coluna “Flagrante Delitro”, comentando dois autores que lia naquele momento, Valter Hugo Mãe e Carola Saavedra.[1]
Minha vivência entre línguas e culturas tão divergentes certamente influenciou e influencia a minha escrita. Fui alfabetizada entre línguas, pouco tempo depois entraram uma terceira e quarta línguas no meu cotidiano, tudo isso num ambiente onde se falava uma outra língua nas ruas — o bahasa melayu — mas também o mandarim e o tamil, além de ser um país que também tem suas línguas indígenas, ainda que essas não se ouçam nas ruas da capital. Essa minha vivência, combinada com o fato de não ter passado por uma formação acadêmica de graduação em literatura (estudei ciências políticas na graduação na Itália e no mestrado no Brasil), me deu uma ampla liberdade para escolher minhas leituras; claro que também trouxe lacunas, mas não acho ruim ter passado por uma formação intelectual livre e anárquica. Dessa forma, autores canônicos, tanto italianos quanto brasileiros, não têm o mesmo peso para mim, para minha escrita, e sirvo-me deles na medida em que minha língua e linguagem sentem tal necessidade. Por afinidade, e graças a muitas traduções para as línguas que domino, escolho os poloneses como Zbigniew Herbert, Adam Zagajewski, Wisława Szymborska, ou a portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Talvez isso me dê a liberdade de brincar um pouco mais com a escrita, criar um cânone e uma filiação que saiam dos moldes do que seria esperado de uma poeta da minha geração, do meu domínio linguístico. Agora estou aqui no semi-ártico, como diz Luciano, pronta para desbravar novas latitudes literárias. Uma experiência muito enriquecedora para mim, essas últimas semanas, têm sido lecionar português, usando o inglês como língua veicular, para uma família islandesa que se prepara para viver um ano sabático em Lisboa.
Pé de moleque – Quais os grandes nomes da poesia nórdica que precisamos conhecer? Quais características importantes dessa poesia, diferenciais em relação a outras tradições? E quais os estereótipos que os brasileiros geralmente temos em relação a essa parte do mundo e que precisam ser quebrados?
Francesca Cricelli – Difícil responder a essa pergunta, ainda estou muito crua para responder de forma consistente, talvez eu só possa falar das minhas preferências e indicar um caminho de leitura para leitores lusófonos. Diria que qualquer pessoa que tenha curiosidade e desejo de conhecer mais sobre a poesia nórdica moderna e contemporânea deve seguir no Facebook a página “Um poema nórdico ao dia” com curadoria e tradução de Luciano Dutra.[2] A cada dia da semana é apresentado um poema de uma língua nórdica e sua tradução, então, o que farei aqui para você, é indicar um poeta cuja obra me fascina em cada língua, cada dia da semana. Segunda-feira é o dia do feroês, e indico o poeta Carl Jóhan Jensen, cujo livro Nona manhã está traduzido e publicado no Brasil pela Editora Moinhos e pela Sagarana forlag (2017). Já terça-feira é o dia do sueco finlandês; gosto muito da poeta Edith Södegran, que também será publicada no Brasil com tradução de Luciano Dutra, e tenho até um poema meu dedicado a essa autora no livro As curvas negras da terra (Nosotros Editorial, 2019). Quarta-feira é o dia do dinamarquês, e meu voto vai para a poeta Inger Christensen. Quinta-feira é o dia dedicado ao bokmål, uma das variantes do norueguês: “Sustento a tua cabeça”, de Stein Mehren, é o poema que mais amo entre os que li na página de poemas nórdicos. Sexta-feira é o dia do sueco, entre tantos eu leio com gosto Tomas Tranströmer. Sábado é o dia do islandês, e eu indico nesse idioma a poeta Soffía Bjarnadóttir. Por fim, no domingo, que é o dia do nynorsk, a outra variante do norueguês, minha predileção é pelos versos de Olav H. Hauge. Mas é difícil escolher, pois são inúmeros os poetas nórdicos importantes, sorte a minha ter muito tempo pela frente para ler e aprender mais sobre estas culturas tão ricas e profundas. Não podemos esquecer que toda a cultura ocidental, ainda mais a germânica, possui uma dívida com as sagas, narrativas que mesclam a história da língua e da ilha e que colocaram a prosa numa posição central muito antes de outros rincões do mundo ocidental. A literatura islandesa antiga é fundamental para qualquer estudo sobre a Idade Média. Além disso, há a Edda de Snorri Sturluson, composta na primeira metade do século XII, um dos principais monumentos da literatura medieval no mundo, o texto fundamental para o conhecimento do patrimônio mitológico nórdico, da crença pagã da Escandinávia pré-cristã.
Quanto aos estereótipos, imagino que muitos latinos devam pensar que os nórdicos e escandinavos sejam frios como seu clima. Eu tive a sorte de experimentar o contrário, a sorte de crescer na Malásia e depois na Itália rodeada por grandes amigas nórdicas: as suecas Jenny, Caroline, Malin e Åsa e a finlandesa Niina. Eram as amigas com quem partilhava a maior intimidade, as mais interessantes vivências, estávamos numa comunhão de afeto, com elas pude passar por um profundo aprendizado sobre igualdade de gênero, feminismo e justiça social ainda no começo do anos de 1990, pois para elas era algo que vinha de berço. Uma liberdade profunda para viver e pensar a própria sexualidade, uma erudição combinada com despojamento que misturava música pop à alta literatura. Frequentei muito a casa dessas amigas, suas famílias, eu vivia ouvindo tanto o sueco como o finlandês que em sua sonoridade se tornaram familiares para mim já na adolescência. Recentemente encontrei Caroline, após quase vinte anos, na Basileia, onde ela vive e trabalha. Passamos algum tempo juntas e num jantar entre risadas e brindes ela me disse, sobre minha mudança para Islândia: “Veja como seu destino e atração pelo mundo nórdico são antigos e provêm da nossa adolescência”. E continuou: “Você procurava algo em nós e nós precisávamos desse teu afeto sem fronteiras, sempre nos abraçando, beijando, agarrando e incentivando a transpor barreiras, a transgredir”. Tenho pouco tempo de Islândia, mas já conto com alguns amigos e conhecidos, minha experiência é de um profundo acolhimento, ternura, informalidade e carinho. Sinto-me, por exemplo, adotada pela família para qual leciono português — as crianças tentam me ensinar islandês, o pai sempre tem um livro para me emprestar ou mostrar, a mãe senta comigo para me contar da sua formação num fiorde distante daqui… Volto para casa recarregada de energia após o trabalho. Claro que há muitas diferenças, mas por elas sinto-me atraída e embebida, no desejo de dominar a língua pelo menos o suficiente para entender todas as conversas que me rodeiam. Sei que levará tempo para me expressar como quero, mas esse não saber não me assusta, pelo contrário, me convida para o novo, para o desconhecido que há no mundo e há em mim. Já vivi essa experiência tantas vezes em minha vida de forma inconsciente, é uma sorte poder revivê-la com a consciência (e o inconsciente e a inconsciência) de uma mulher da minha idade.
Pé de moleque – Comente um pouco seus trabalhos atuais, seus projetos. E como será sua participação no Bordel Literário de Reykjavík?
Francesca Cricelli – Enquanto aguardo minha defesa de doutorado, no Brasil, traduzo um ensaio, um romance, alguns livros de poesia e leio livros para um prêmio literário, leciono português (aulas particulares por enquanto) e no mês que vem começo o curso de verão de língua islandesa da Universidade da Islândia e do Instituto Árni Magnússon de Estudos Islandeses.[3] Dia 4 de julho, sou a poeta homenageada do bordel literário de Reykjavík, ou como dizem os islandeses, Rauða skáldahúsið, a “Casa da Luz Vermelha da Poesia”. Pode-se conferir fotos e vídeos das edições passadas na página deles no facebook.[4]
Inspirado nos bordéis fin-de-siècle de Nova Orleães e Paris, muitos dos quais funcionavam como refúgio seguro para jovens artistas de vanguarda, o Poetry Brothel de Reykjavík segue os passos de suas edições-primas, a novaiorquina e a berlinense. Aqui, temos Madame Karítas, que apresenta um elenco rotativo de poetas, cada um atuando como uma personagem cuidadosamente construída dentro do tema da edição presente. A noite é animada por leituras públicas, explosões espontâneas de poesia, performance, música e números burlescos, mas os poetas também fazem leituras de poesia cara-a-cara, privadas. Encontram-se com seus clientes, após o pagamento de uma pequena taxa, num quarto mais reservado do teatro e ali trabalham — aqui o espírito do bordel. Como poeta convidada e homenageada dessa edição, terei o palco para mim por vinte minutos para ler meus versos em português e em italiano, acompanhada por um leitor islandês que dará voz às belas traduções do leu livro 16 ljóð +1, que foi publicado aqui em Reykjavík em 2017 (Sagarana Forlag), e depois estarei como os outros poetas à espera de clientes. O tema dessa edição é Inferno, pois vamos descer os círculos dantescos até o fim, andar por todos os pecados. Vou contribuir, dessa vez, também com leituras na língua de Dante. Fui convidada por uma das curadoras do evento, Meg Matich, poeta e tradutora norteamericana especialista em literatura islandesa, residente em Reykjavík há alguns anos. Talvez esta seja uma uma forma um tanto quanto inusitada para começar minha participação na intensa cena literária e artística desta cidade que embora seja pequena é também a capital mais ao norte do mundo e cidade literária da Unesco. Reykjavík conta com uma vasta população de escritores, poetas, musicistas, críticos literários e jornalistas e abriga inúmeros eventos literários durante o ano todo. No último final de semana, por exemplo, assistimos a um encontro entre os poetas Lavinia Greenlaw, Paul Muldoon e Simon Armitage no Centro de Estudos de Línguas Estrangeiras Veröld numa ação conjunta com a Reykjavík Cidade Literária da Unesco e o Instituto de Pesquisa em Literatura e Artes Visuais da Universidade da Islândia, em que se discutiram os caminhos dos versos escritos entre as ilhas do norte, algo que havia começado há alguns anos durante um encontro, nas ilhas Feroés, entre escritores do mundo inteiro, nascidos em ilhas. Sjón, que esteve presente neste primeiro encontro, decidiu estendê-lo no tempo e espaço e convidou para a diálogo com os poetas britânicos os islandeses Kristín Svava, Sveinn Ingi e Aðalsteinn Ásberg Sigurðsson. Um encontro riquíssimo, divertido e erudito, que concluiu com a apresentação dos três livros dos poetas convidados em roupagem bilíngue pela editora Dimma, sob o trabalho do editor Aðalsteinn Eysteinsson, com versões para o islandês assinadas pelos poetas Magnús Sigurdsson, Sigurbjörg Þrastardóttir e o próprio Sjón. Há uma contínua efervescência no campo literário, aqui. É possível acompanhar muito do que acontece em inglês, pois vários eventos que contemplam também essa língua, mas é essencial aprender o islandês para poder navegar com maior intensidade e prazer entre essas marés literárias.
“Francesca Cricelli e as fendas da criação”. Interview by João Pedro Soares Martins. Pé de Moleque Livros. Campinas. July 2019