“Em nós fala um outro. Conversas flutuantes” Interview by Carola Saavedra, 2021
Carola Saavedra e Francesca Cricelli conversam sobre como o autoexílio e a confluência de línguas na criação literária marcam suas trajetórias
Conversa com Francesca Cricelli
1.
Carola: Lembro de forma muito vívida os nossos encontros em São Paulo, era 2018, época das eleições, eu estava muito angustiada, lembro que num desses encontros, por acaso num restaurante, sem falar nada, te abracei e chorei, chorei por tudo aquilo que estava acontecendo. De alguma forma, eu sabia que algo nos irmanava. Talvez um passado de deslocamentos, talvez um olhar para o mundo, talvez um saber… Um ano depois, eu tinha vindo morar aqui em Colônia, nos reencontramos num evento na Universidade, e tudo tinha mudado, na minha vida, na sua (você tinha se mudado para a Islândia), tudo tinha mudado no país.
Francesca Cricelli: De fato, nosso encontro tem algo de onírico para mim. Não me lembro exatamente como nos falamos pela primeira vez, se foi por e-mail ou alguma rede social, mas eu fiquei muito emocionada por me sentir tão acolhida quando nos vimos, eu já era sua leitora e admirava tanto sua obra e me parecia um sonho saber que você queria ler o Repátria. Depois, senti de imediato uma intimidade como se aquele fosse um reencontro de antigas amigas, mas acabávamos de nos conhecermos, morávamos no mesmo bairro, sofríamos pela situação política e sentíamos saudade de algo tão bom e fecundo que São Paulo já havia nos ofertado. No meio de tanta conversa emocionada, lembro-me também que demos boas risadas, falamos sobre nossa paixão pela psicanálise, falamos do “Dr. Fritz”, você me contou das idas ao restaurante mexicano e dos mariachis, de imediato senti uma ligação muito forte, talvez por conta de nossos inúmeros deslocamentos e buscas por questões identitárias entre línguas e países, algo que acabamos criando na escrita — como um lugar de pertencimento. 2018 foi um ano especial para mim, um pouco antes de terminar minha tese de doutorado acabei viajando muito, fui até à China para um festival de poesia e para dar algumas aulas na Universidade de Pequim, também saiu um pequeno livro meu por lá e passei meu aniversário em Xangai, onde ele foi apresentado, e foi nessa viagem que decidi que me mudaria para a Islândia após minha defesa. No mesmo ano, fui também à Islândia para um congresso e à Croácia em outro festival literário e à Flip em Paraty, sinto que esses deslocamentos contínuos eram uma forma um pouco excêntrica que encontrei para suportar o medo do que estava por vir, a situação política já muito tensa desde o golpe de 2016. Uma noite, voltando para casa em Pinheiros, parei com amigos para fixar um lambe-lambe “Fora Temer”, não lembro agora se isso foi em 2016 ou 2017, um homem marombado num carro nos viu, deixou o automóvel ligado no semáforo vermelho, desceu e veio em nossa direção tentando nos agredir fisicamente, éramos duas mulheres, voltamos correndo para minha casa. Senti muito medo. No dia seguinte às eleições também fui agredida por uma vizinha, pois ao ser confrontada sobre os resultados falei que estava muito triste, mas de cabeça erguida e batom vermelho saía para trabalhar — ela ficou furiosa e disse: “quando pessoas como você forem embora daqui, o Brasil vai melhorar”. Minha ideia de deixar o Brasil era mais ligada ao encontro amoroso com meu companheiro e a um desejo de me aventurar num lugar tão diferente, a Islândia, mas havia também uma angústia sem nome que pairava no ar e que se reforçava com esses episódios hostis. Sentia que não havia muita perspectiva, naquele momento, para permanecer no Brasil após o doutorado, com isso também havia alguma ilusão (errônea) de que conseguiria me encaixar facilmente no mundo acadêmico daqui, por ter sido bem-recebida durante alguns congressos, mas não foi bem assim depois que me mudei. Agora estou há quase dois anos na Islândia, ainda estamos atravessando uma pandemia, a lembrança do nosso encontro e daqueles anos parece um relato literário, a cena de um filme, naquele encontro jamais pensei que passaríamos por tantas das coisas que estamos vivendo hoje, embora já previa o desmonte do país encaminhado pelo atual governo. Como ficou para você essa questão da distância e da angústia política atravessadas pela pandemia? Sei que a Alemanha está fechada desde janeiro para não residentes ou não alemães, minha mãe está com um voo marcado de São Paulo para cá via Francoforte e até agora não conseguiu embarcar. Eu me sinto sequestrada por esses acontecimentos, as novas ondas do vírus, as variantes, os negacionistas e anti-vacina mesmo aqui na Europa.
Carola: Você usou a palavra “sequestrada”. Eu acho que define bem esta época, os últimos acontecimentos, pandemia, etc. E se acrescentarmos a situação política do Brasil, parece que afundamos numa longa noite (ou talvez nunca tenhamos saído dela). Ao mesmo tempo, até a longa noite tem suas luzes, esses momentos de respiro, de vida, de alegria. Parece que a pulsão de vida (isso que move o sol e as outras estrelas) se tornou nossa principal forma de resistir, de seguir em frente. Em relação à distância política atravessada pela pandemia, eu tenho uma sensação bem curiosa, me sinto mais perto do Brasil do que nunca, mesmo estando geograficamente longe, eu vivi uma pandemia muito diferente da dos alemães porque vivi uma pandemia marcada pelos acontecimentos no Brasil, tanto pessoais quanto políticos. A gente pode estar geograficamente longe, mas estar muito perto e também ao contrário, pode estar no centro dos acontecimentos e se manter completamente alienado a eles.
Francesca Cricelli: Concordo com o que você traz aqui, adorei a citação do Dante, l’amor che muove il sole e l’altre stelle. Sinto que também tenho atravessado esses meses com uma ligação profunda aos acontecimentos no Brasil, talvez nessa distância estou aprendendo outra vez o que é pertencer a uma terra, não importa onde estamos, mas há algo que insiste e não podemos escolher, está presente em nossos dias e em nossa constituição íntima.
2.
Carola: Você vem de constantes deslocamentos, entre línguas (português, inglês, italiano, espanhol, etc.), países, gêneros literários, você transita e eu acho linda a forma como isso aparece no seu trabalho. E agora está estudando islandês, língua e literatura islandesa. Eu me pergunto, que portas outras e inesperadas se abrem? Que facetas aparecem no espelho?
Francesca Cricelli: O primeiro impacto com a língua islandesa, muito antes de pensar que viria morar aqui, me provocava certa graça, sentia-me envolta numa memória primitiva da pré-linguagem, ouvia o Luciano se comunicando e como lhe respondiam, depois saíamos às ruas, só os dois, e eu fazia uma espécie de imitação do diálogo preenchendo com sentido o que era só som. Não tenho conhecimento científico sobre os processos de aquisição de linguagem das crianças, mas na minha fantasia aquela experiência me remetia a algo primitivo e esquecido que eu já havia vivido. Eu claramente estava romantizando aquela vivência, quando de fato me mudei para cá, minha reação foi bem diferente ao viver dia após dia uma espécie de exílio linguístico, na verdade era muito angustiante. Embora eu já dominasse muito bem o inglês, sentia-me mal por abordar todos numa língua que não era nem a minha nem a deles, sentia-me no mesmo lugar de um turista, mas eu já morava aqui. Além disso, havia o estranhamento profundo de todas as coisas, a temperatura, a pressão atmosférica no paralelo 64 norte, a incidência da luz do sol oblíqua e por só três, quatro horas no inverno, o gelo, a neve, o estranhamento do supermercado, a escassez de frutas e verduras, tudo escrito em islandês (e até aí tudo bem, logo fui aprendendo algumas palavras), mas muitos produtos importados dos países nórdicos com rótulos em dinamarquês, sueco, finlandês. Eu chegava em casa exausta após fazer compras no supermercado, precisava deitar. Comecei a experimentar o avesso do meu encantamento, talvez o terror que se vive quando ainda não há a linguagem e a comunicação passa por algo intuitivo, pela adivinhação — como é entre mãe e bebê, talvez isso também se aloje em algum lugar da nossa memória, na mente, no corpo. Acho que as portas inesperadas são essas de uma vida pré-linguagem, porque o islandês é uma língua muito antiga, ela se preservou praticamente igual desde os anos da colonização depois do ano 874, a minha primeira professora dizia que “aprender islandês é aprender a acariciar um dinossauro”. É uma língua nórdica germânica, mas muito antiga, um latim nórdico, como dizia Borges. Outra porta inesperada, para mim, foi adentrar a complexidade de uma língua que preservou suas declinações, você me entende por viver há tanto tempo dentro da língua alemã, mas nós perdemos essa complexidade nas línguas românicas, essa tridimensionalidade só existe nos pronomes, demorei algum tempo para “incorporar” isso em meu raciocínio, no começo houve muita resistência, mas depois seguiu um encantamento. Tenho praticado isso traduzindo poemas islandeses para o italiano e o português, depois de traduzir observo novamente o poema fazendo uma retro-tradução, tentando entender porque as palavras estão declinadas daquela forma. Há também uma condensação numa língua dessas e isso me fascina, como é possível expressar tanto com tão poucas palavras. No espelho surgiram facetas que estavam escondidas há muito tempo, aliás, eu achei que elas nem existiam mais, eu que passei por tantas circunstâncias de não saber a língua do país em que me encontrava, que havia recalcado os sofrimentos da mudança para a Itália aos 9 anos e para a Malásia aos 11, eu que só me lembrava das coisas boas que essas experiências me trouxeram, vivenciei uma angústia e perda de sentido de identidade. Mesmo adulta, mesmo equipada intelectual e emocionalmente, me vi desprovida daquilo que me enraizava na minha existência nos últimos 15 anos: falar português todos os dias, ter construído uma existência em torno do trabalho literário como poeta, tradutora e professora, a vida acadêmica, de alguma forma meu ser estava atrelado a tudo isso, eu vivia uma vida rica de encontros e amizades. Me vi de repente feliz por estar perto da pessoa que amo e que escolhi como companheiro, mas sem a minha língua pública, sem a minha vida pública, o português se tornou novamente uma língua doméstica, na rua eu falava em inglês, sentia pavor de alguém me abordar em islandês, sentia vergonha por não entender a língua local e me sentia à margem, mesmo logo encontrando amigos e sendo acolhida pela comunidade dos escritores estrangeiros que moram aqui. Eu perdi minha persona pública e observei que muito daquela construção era uma espécie de amparo, muleta, não era algo falso, mas escondia outros aspectos. Essa vulnerabilidade não foi fácil de atravessar, mas me devolveu muitas coisas boas, um sentido mais pleno de mim, me vi desamarrada da minha persona pública, me vi livre. Mas a liberdade também causa vertigem. Acho que eu vivia tão identificada com o meu “fazer” no mundo que havia perdido os rastros de algo mais, de alguma outra coisa que também era eu e que vivia sem espaço para ser.
Carola: Acho super interessante o que você diz sobre perder a pessoa pública que se é. Me fez lembrar de uma conversa que tive com a minha analista, logo no início da análise, eu disse algo como “ah, mas isso não sou eu, isso é a persona da escritora”, e ela respondeu: mas a persona da escritora também é você, não há mais como desfazer-se dela”. E eu carrego essas palavras comigo até hoje. Digo isso porque, me parece, a pessoa pública que a gente é não é nossa única persona, claro, mas ela continua ali, mesmo nos momentos em que silencia, quando caminhamos na rua num país estrangeiro, quando falamos um outro idioma, ela continua lá, é parte de quem somos. Isso de certa forma me conforta. O que, claro, não diminui a vulnerabilidade, já que no fundo, tudo é persona, tudo é ilusão. Acho lindo o que você diz sobre essa experiência de se ver numa língua totalmente estrangeira como uma re-experiência da infância, esse balbuciar que nos marcou. Esse retorno ao real da pré-linguagem. Poder olhar com curiosidade e mistério para aquilo que veio antes de nós.
Francesca Cricelli: E eu não havia pensado nisso que você me trouxe aqui, que claro, a persona pública também somos nós, afinal isso também foi e é uma construção, não é? Eu acho tão gostoso conversar com você, Carola, mesmo que seja por “correspondência”, aqui. Sinto que essa troca mistura uma sensação de estarmos sentadas à mesa juntas tomando um chá e, ao mesmo tempo, é como se eu estivesse respondendo a uma carta. Eu que amo cartas! Fico pensando nas suas palavras “poder olhar com… mistério para aquilo que veio antes de nós” nessas últimas semanas que antecedem a cesura que será o nascimento do meu filho, acho que estou observando em silêncio esse porvir enquanto acaricio a barriga e converso com ele. Lembro-me de um livro de Winnicott, no qual ele diz: “a mãe já passou pela experiência do próprio nascimento, mas o filho ainda não”. Talvez nem faça sentido escrever isso, mas me abandonei à livre associação durante o nosso chá por correspondência.
3.
Carola: Você está terminando (ou já terminou) o seu novo livro, Inventário de ébano, ao mesmo tempo em que aguarda o nascimento do seu filho. A metáfora livro-filho não é nova, mas sempre me interessa, já que cada escritora vive essa relação de forma diferente. Quando eu engravidei, parecia que tudo o que eu tinha escrito era de alguém que nada tinha a ver comigo, eu olhava para os meus livros muito surpresa de que em algum momento eu tivesse escrito aquilo. Como tem sido para você?
Francesca Cricelli: Me lembrei agora que em nosso primeiro encontro conversamos sobre sua filha, sobre a gravidez, sobre a reação dos seus pais. Lembro de uma sensação gostosa te ouvindo, eu pensava “será que eu vou ser mãe também? olha só, a Carola é mãe, escreve, já escrevia, continua escrevendo…”, eu acho que andava silenciosamente cortejando meu próprio desejo de maternidade, mas tinha tanto medo (e desejo) que era difícil pensar a respeito, não havia espaço para este pensamento. Tenho aprendido, nesses quase dois anos de Islândia, que uma parcela desse medo que eu sentia (e receio) era no fundo atrelada às questões sociais e culturais que compõem o quadro da maternidade no Brasil, mas não só no Brasil, em geral nos países da América Latina e do sul da Europa, exacerbando ainda mais a divisão de classe — tenho experimentado por aqui como é viver numa sociedade menos machista e com maiores garantias sociais, isso, certamente, confere mais espaço de manobra para certos desejos. Ter o mesmo acesso aos cuidados de pré-natal e a um parto humanizado é o denominador comum na Islândia, todas as mulheres de todas as classes sociais têm acesso a isso — que é o mínimo. Além disso, há outros fatores culturais que chamaram minha atenção, como, por exemplo, o sentido de comunidade (todos doam roupas de crianças, objetos que já não usam mais e em geral não há uma angústia em fazer da gestação e da maternidade mais um parque de diversões do capitalismo desenfreado), também há uma rede de apoio pública, licença maternidade/paternidade de 12 meses e acesso à creche a partir dos 6 meses. Terminar Inventário de ébano, livro que eu vinha escrevendo desde 2016, se tornou uma urgência com a aproximação do meu último trimestre de gravidez. Minha primeira experiência com a vivência da mãe que serei (e já estou sendo) é algo que não cabe ainda em palavras, tenho mais experiência com livros do que com o que estou vivendo agora. Senti um desejo imenso de “deixar para trás” o que eu já havia escrito, claro que há diversos poemas escritos durante minha gestação. Mas senti um chamado profundo pela página em branco, preciso estar livre da minha própria escrita, quero acolher o ineditismo dessa vida em nossas vidas sem palavras prévias — que essa chegada seja inclusive uma inauguração de linguagem. Com isso, decidi colocar um ponto final no livro, editá-lo, organizar a “dramaturgia” ou “arquitetura” do livro, tirar poemas, acrescentar poemas, ordená-los. Em paralelo, eu vinha escrevendo um texto mais longo de prosa, é um livro autoficcional sobre migrações, infância, linguagem e os lugares ocupados pelas mulheres da minha família (pequena e forte família matriarcal). Aliás, preciso dizer que o primeiro incentivador para abraçar essa aventura de escrita em prosa foi o Julián Fuks, viajamos a trabalho para uma pequena cidade no interior do estado de São Paulo e conversa vai conversa vem ele me disse: “Você precisa escrever esse livro”. Me tornar uma tradutora literária, uma tradutora de romances, também me permitiu soltar a mão em relação à prosa. Mas esse projeto chegou num ponto de estagnação, eu precisava de uma pausa, porque há algo ainda não vivido ou não concluído, eu preciso atravessar esse momento e ter alguma distância dele para continuar escrevendo. Achei maravilhoso o que você disse sobre ler o que você havia escrito antes de estar grávida e ler novamente durante sua gravidez e não se reconhecer. Não sei se senti isso, mas sinto uma urgência pelo silêncio e pela página branca, por uma separação dessa escrita que veio antes. O agora ainda não tem forma de escrita, é tudo tão imediato, imenso e corporal, minhas palavras não alcançam e nem quero que alcancem. Eu, que sempre precisei das palavras, que forjei muito da minha existência através delas, agora desejo a página branca. Queria marcar esse momento, deixar o Inventário para trás, um livro que é muito importante para mim, mas preciso deixar espaço para algo maior do que a poesia, algo ainda desconhecido, ou só conhecido pelos acenos do que tem sido nossa convivência nesses quase 9 meses.
Carola: Que bonito. E isso tem a ver, ao menos faço essa conexão agora, com esse retorno da pré-linguagem. Ter um filho é uma experiência pura do real, num sentido lacaniano, daquilo que não pode ser representado, que foge à razão e às palavras. Me parece que as suas experiências na Islândia estão ligadas a esse espaço fora da linguagem, a essa busca pelo mistério, pelo indizível. Ter um filho pode ser uma travessia, no meu caso foi, e transformou a minha escrita de uma forma tão profunda que até agora não sou capaz de explicar. Mas tudo bem, a gente não precisa explicar tudo.
Francesca Cricelli: Pois é, tão bom sentir que não precisamos explicar tudo. É engraçado como o desejo se inscreve nas brechas. Antes de engravidar escrevi um relato autoficcional em prosa sobre esse desejo (sem ter consciência que eu estava escrevendo isso), depois, aqui na Islândia, escrevi uma série de poemas falando sobre o processo de fertilização do figo, das vespas que o fecundam e morrem, perdem as asas. E agora me sinto imersa nesse transe da espera, cada vez mais lenta, dentro da música Eu e água, cantada na voz da Maria Bethânia.
4.
Carola: Transcrevo aqui um trecho do livro Viver entre línguas, da Sylvia Molloy. É uma passagem que me marcou muito quando li (tanto que citei na conversa com a Prisca também): Siempre se escribe desde una ausencia: la elección de un idioma automáticamente significa el afantasmamiento del otro pero nunca su desaparición. Ese otro idioma en que el escritor no piensa, dice Roa Bastos, lo piensa a él. De que forma esse outro idioma nos pensa? Será esse outro idioma (ou esses outros idiomas) um sujeito adormecido do inconsciente? Que pensa e trama escondido. Ou será esse outro idioma uma possibilidade não vivida, um “outro” que se mantém ali, vivendo sua vida em silêncio.
Francesca Cricelli: Sou apaixonada pela Molloy, inclusive estive no lançamento deste livro precioso, editado pela Relicário, no Instituto Cervantes, em São Paulo, foi uma época de final de tese de doutorado, eu vivia num regime de clausura, mas não resisti, tive que conhecer pessoalmente a autora. Trouxe poucos livros meus para a Islândia, mas Viver entre línguas veio na mala. Gosto muito de pensar nesse outro idioma como uma possibilidade de vida não vivida, ainda que eu escreva poesia em italiano e inglês (agora é algo sempre mais esporádico, normalmente nasce com uma encomenda, com um pedido especial), o português domina cada vez mais a cena. Certa vez me perguntei, durante minha análise, o que teria sido da minha vida se eu não tivesse voltado ao Brasil, às vezes sentia que teria de toda forma me tornado poeta, escritora e tradutora, mas seria o italiano a língua principal, outras vezes sentia que talvez nunca teria me dedicado à escrita, que teria vivido uma vida feliz, mas mais corriqueira, sem esse atravessamento que se tornou algo central na minha existência. Teria sido outra Francesca com o italiano como a minha língua do cotidiano, da vida pública? Acho que sim. Contudo, trouxe a língua italiana, a Itália, seus embates políticos e contradições comigo, e essa língua continuou ocupando um lugar central na minha vida, mesmo no Brasil. Meu ganha-pão sempre foi dar aula de italiano e traduzir e trabalhar como intérprete, primariamente entre o italiano e o português. Além disso, sempre houve a presença da poesia e da literatura italiana como algo central na leitura e escrita, meu doutorado caminhou por essas veredas. Sinto, porém, que esse interesse foi proporcionado pela distância, pela saudade, pela ausência — exatamente como descreve Molloy. Eu precisava recriar a Itália para mim no Brasil, minha forma de fazer isso passava pela tradução, pela leitura, pela escrita. Sinto que agora que vivo na Islândia se acrescenta a essa ausência o Brasil, que é sempre uma presença, mas que preciso, de alguma forma, recriar todos os dias através da língua, das traduções, da música. A língua inglesa, por exemplo, ficou adormecida por um bom tempo dentro de mim. Foi a minha língua principal dos 11 aos 18 anos, quando morava na Malásia, foi um grande esforço ter um domínio tão avançado e depois conseguir desconstruir as amarras sintáticas para voltar à fluência no italiano e no português. Quando terminei o colégio, enquanto todos os meus colegas (mesmo os que não eram nativos em inglês) decidiam seguir seus estudos na Inglaterra ou nos Estados Unidos, eu vivia uma recusa e uma resistência em seguir vivendo naquela língua. Vivia um terror de que o português e o italiano se tornassem minhas línguas “de herança”, tinha uma sensação intensa de perder meus contornos — como diz Ferrante em seus livros, passar por uma smarginatura, ou como foi traduzido de forma brilhante pelo Maurício Santana Dias (meu orientador de doutorado!): “desmarginação”. Minha experiência com a linguagem percorre um caminho inverso, eu tinha tudo para me jogar plenamente nessa experiência com uma terceira língua, mas recusei. Decidi dar alguns passos atrás e procurar algo que eu nem mesmo sabia o que era, no meu passado, na minha história, e me reapropriar desses elementos perdidos. Depois, decidi escrever a partir desse lugar. E como você sente isso agora que está na Alemanha, quais são “as outras línguas” e de que forma estão te habitando? Fiquei curiosa, pensando se há algo disso nas reflexões de O mundo desdobrável — aliás, não vejo a hora de ler!
Carola: Acho superinteressante o que você diz, o medo de perder uma língua, eu sempre tive muito medo disso. Especialmente o português, eu suportaria perder qualquer outra língua, menos o português. Algo que só me dei conta há pouco tempo. É que o português foi pra mim uma espécie de “tábua de salvação”, o idioma que me deu um lugar no mundo. Onde eu construí coisas muito concretas. Uma casa, um chão onde pisar… E essa “construção” é algo meu, não desaparece porque estou na Alemanha. Mas foi um longo caminho, de certa forma a literatura me deu isso, essa casa que eu transporto para onde for. A literatura me salvou de tantas formas.
Francesca Cricelli: É uma imagem linda, te vejo caracol e marujo com a língua-casa por todos os cantos e os rastros-livros com os quais você nos presenteia, ajudando a encontrarmos nossa própria casa.
5.
Carola: Você trabalha bastante com o gênero epistolar. Eu amei o seu texto Carta a Hanna Paulsson. Como tudo o que você escreve é lindo, intenso e poético. E tem um ritmo raro, às vezes dá falta de ar, como se tua escrita nos obrigasse a reaprender a respirar. Mas quero falar do gênero. Quando escrevi Flores azuis, que é de certa forma um romance epistolar, pensava no quanto a estrutura da carta permite certos mergulhos que outros gêneros não abarcariam, algo que se move entre o mais íntimo e o mais exterior, a imagem (de Alice) no espelho. E também a possibilidade de retomar a ideia da mensagem numa garrafa, para todos e para ninguém.
Francesca Cricelli: Eu adoro Flores azuis, assim como os seus outros livros. Foi o último que li, embora seja dos mais antigos seus. Li justamente na época do doutorado, minha tese seguiu a descoberta de cartas de amor de Giuseppe Ungaretti para Bruna Bianco, até então inéditas, nessa época me cerquei também de romances epistolares, além das leituras teóricas, pois sentia que havia algo além do biográfico nas cartas, havia algo de ficcional, havia uma ficcionalização do biográfico, e sentia que a leitura de textos literários de ficção — para além de outros compêndios epistolares — pudessem iluminar essa questão. Fico feliz que você tenha gostado da “Carta a Hanna Paulsson”, gostaria de escrever outras cartas assim, vamos ver se darei conta. Eu sempre tive um imenso fascínio pelas missivas e não sei bem como isso nasceu. Quando era criança, sempre escrevia bilhetes para os meus pais, ambos trabalhavam muito e eu os via pouco, deixava-os escondidos nos bolsos, nas bolsas, nos casacos. Eles os encontravam em algum momento e no final do bilhete havia sempre alguma pergunta com a possibilidade de escolherem Sim ou Não como resposta. Relembrando, fico pensando se já não era um gesto para aproximar a distância, como são as cartas, ou uma forma de me expressar para entender o que eu sentia. Acho que a carta tem esse fascínio por poder ser uma escrita em primeira pessoa, mesmo dentro de um romance, de um texto ficcional, e ter um endereçamento (que seja para todos, para ninguém ou para alguém em específico). Fiquei pensando agora na breve carta que Cesare Pavese deixou quando se suicidou. Um gesto íntimo, sim, mas também, em alguns casos, uma escrita já pensada para outros leitores, para além do leitor a quem é endereçada. Pavese foi não só um grande escritor, poeta e editor, mas também um exímio escritor de cartas, amo suas missivas, tenho traduzido algumas e vejo nelas um gesto também de se revelar para um público maior. O mesmo ocorre nas cartas de Ungaretti a Bruna, claro que são cartas íntimas dentro de uma relação amorosa, mas havia na escrita do poeta toda uma intenção de discutir sua ideia sobre o que é poesia e a carta, a conversa íntima, era algo que auxiliava a organização das suas ideias. Sinto que a troca epistolar pressupõe não só uma leitura, mas uma escuta. Nesse sentido, novamente, me faz pensar nesse hiato que existe entre o que é escrito e o que é compreendido, assim como o que é dito e o que é compreendido, por exemplo, num encontro psicanalítico: nesse caso, sempre me vem a metáfora de que os analisandos escrevem longas cartas e recebem de volta um postal do analista, uma imagem, poucas palavras. Uma das epígrafes da minha tese de doutorado foi “Sustento ao infinito, para o ausente, o discurso de sua ausência”, um trecho de Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes. Há algo de carta num livro, uma carta talvez atirada ao mar, não sabemos quem será o leitor e quando isso acontecerá, com a poesia é algo ainda mais radical, pois o tempo de recepção de um livro é bem diferente.
Carola: Sim, há sempre esse “outro” a quem endereçamos nossas palavras (escritas ou faladas). Você cita a carta de suicídio de Pavese. Por que será que temos essa necessidade? Antes eu achava que era uma necessidade ligada à permanência, algo que permaneça, mas hoje suspeito que não é isso. Talvez as palavras jogadas ao vento, a carta de suicídio ou a mensagem na garrafa estejam mais ligadas a um atravessamento da alma, algo capaz de nos marcar e, quem sabe, de alguma forma, nos ajude a decifrar o enigma que é estar aqui, mesmo que brevemente, essa luz que se acende.
Francesca Cricelli: Palavra-gesto, a carta. Acho que nesse endereçamento há sempre um desejo de um olhar, de uma escuta, nem sempre isso é só narcisismo, mas um desejo de acolhimento, reconhecimento especular, nossa existência através da leitura do outro. Quem sabe…. ai, está tão boa essa conversa contigo!
6.
Carola: Deixo aqui um poema da Ana Martins Marques.
Sereia
Sereia
centauro
com sal
melhor é tua metade
animal
a parte humana sendo humana
sempre mente
só mesmo um peixe pode ser
contente
de nada te serviriam
joelhos ou pés
o que és é também
o que não és
nada
é o que fazes bem
metade do que sou
não sou também
Francesca Cricelli: Que lindo esse poema da Ana, ao relê-lo, pensei no conto, do Kafka, O silêncio das sereias, e em Quæstio de Centauris, do Primo Levi. São dois dos meus contos favoritos, já os usei muito em sala de aula, acho que são dois contos para os quais volto com frequência. Levi se identificava muito com esse conto. Nós, que vivemos entre línguas, entre mundos, que tentamos encontrar nosso lugar na escrita, num “entre”, temos algo desses seres que conjugam o humano e o mundo animal, mas isso talvez seja verdade para todos os solitários que regam sua imaginação com palavras. Deixo aqui para você um poema da poeta Corina Oprae, ela é romena mas há muitos anos mora em Barcelona, escreve em catalão e espanhol, é também tradutora literária, e autotraduz sua obra para o romeno. A tradução é minha.
La meva llengua és la teva llengua.
La teva llengua és la meva llengua.
I no és que sigui un bescanvi.
És que si no faig de la llengua d’altri la meva llengua,
m’esclaten magranes de vidre dins la boca.
No només temo la meva ferida.
També penso en la teva.
***
Minha língua é tua língua.
Tua língua é minha língua.
E não é que seja uma troca.
É que se não faço da língua dos outros minha língua,
explodem granadas de vidro na minha boca.
Não temo somente minha ferida.
Também penso na tua.
Carola: Que lindo. Pensei nessa língua que nunca é nossa, a língua é sempre a dos outros, dos que vieram antes de nós, dos seus desejos, das suas ações. Como diz a psicanálise, em nós fala um outro.
”Em nós fala um outro. Conversas flutuantes” Interview by Carola Saavedra. In Jornal Rascunho. Curitiba. Setembro 2021, pp. 14–15.