Entrevistas e outras publicações

Ler e traduzir Elena Ferrante

Tradução e a íntima transgressão da linguagem

Há uma intimidade jocosa na leitura e outra, também por vezes transgressora, na tradução. Ler é estar sozinho consigo mesmo e espiar voyeuristicamente outra intimidade pelas frestas narrativas. Se estar a sós não é um fato aterrorizante, se é possível brincar com sossego ou com uma pitada de desassossego com nossos próprios pensamentos e fabulações, a leitura é uma benesse. Já traduzir é ampliar o sentido da leitura, incidir no corpo do texto. Pensando com André Lefevere, traduzir é reescrever e manipular a fama literária. Há o escritor e há este intermediário que reescreve a obra. O texto que se apresenta não está isento da inserção em seu momento histórico, da inserção dentro do mercado editorial. Para o teórico belga da tradução, “reescritura é manipulação realizada a serviço do poder” e “em seu aspecto positivo, pode ajudar no desenvolvimento de uma literatura e de uma sociedade”.

Não creio que seja casual o sucesso estrondoso de Elena Ferrante, a quase unanimidade entre crítica e vendas, a proliferação das traduções, a narrativa íntima de mulheres e suas vidas ficcionais e ainda assim tão reais para os leitores, a confusão entre a narradora e suas personagens, o mistério por trás da sua identidade e as especulações, as manchetes. Acolhi com alegria o convite de traduzir Dias de abandono (Biblioteca Azul, 2016) enquanto saía, em simultâneo, a tetralogia napolitana, traduzida por Maurício Santana Dias.

I giorni dell’abbandono marcou meu primeiro ano de faculdade, o romance foi publicado na Itália no início dos anos 2000 e em pouco tempo foi adaptado para o cinema pelas mãos de Roberto Faenza, conferindo ainda mais destaque à publicação. É o segundo livro da autora e, portanto, antecede a série que a consagrou nos quatro cantos do globo. O livro, relido com os óculos de tradutora e pesquisadora na área de tradução, mais de uma década depois, desloca a compreensão do sentindo de intimidade.

Nós, leitores, sós e abstraídos, navegando ou à deriva de uma narrativa, somos levados intimamente pela sequência de palavras e enunciações, pela construção de outra realidade diante dos olhos. Em Dias de abandono, Elena Ferrante abre as portas à crise íntima — matrimonial e identitária — de Olga, napolitana que vive em Turim com seu marido e filhos, é uma aspirante a escritora, mas vem adiando o plano de ação, ocupando-se primariamente da organização doméstica e do cuidado com a prole.

Olga é uma mulher jovem, o casamento e a vida familiar parecem servir como anteparo para outras questões, há um equilíbrio que sabemos quebrado desde o princípio: “Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar. Fez isso enquanto tirávamos a mesa, as crianças brigavam como sempre no outro cômodo, o cachorro sonhava resmungando ao lado do aquecedor.” Resta então não só descobrir os motivos por trás da quebra deste equilíbrio, mas, sobretudo, dar ouvidos à personagem que por sua vez dá ouvidos às suas lembranças e alucinações. Há uma possível identificação com Olga que se descobre, como muitas outras mulheres, diante do abandono, sem pontos de apoio para poder definir sua própria existência. A fabulação, para nossa protagonista, parece ser justamente a vida que vivera até aquele momento. Coloca-se então numa busca minuciosa e obsessiva, retraçando cada movimento, cada diálogo e cada decisão tomada que tivesse, por ventura, levado àquele ponto da sua vida — como se houvesse, de fato, uma causa. Sozinha, habitada por estes pensamentos e pelas vozes do passado, ainda precisa cuidar da casa, dos filhos e do cachorro — que no fundo era muito mais do marido do que dela.

Uma trama aparentemente banal e semelhante a qualquer drama burguês contemporâneo encerra na construção da narrativa uma desconstrução da linguagem: esta é a joia escondida na urdidura da trama. Olga poderia ser eu, minha mãe ou minha vizinha. Sua linguagem, seu léxico familiar, para dizê-lo com outra importante referência da literatura italiana, na sequência dos capítulos apresenta uma deterioração, mas talvez não seja este o termo adequado, a mudança talvez seja a condensação do repertório linguístico rumo à comunicação genuína. A narrativa ocorre a posteriori dos fatos: Olga, com efeito, faz um relato de algo pelo qual já passou e neste caminho reconquista o colorido sotaque, ditados, palavras e personagens esquecidas. A reconstrução de eventos marcantes de sua infância retorna como assombro. Mas o que norteia Olga e o leitor é a busca por uma forma para que as coisas sejam ditas, pronunciadas, chamadas pelos seus nomes, às vezes com a necessária crueza. Encontrar na língua o conforto necessário como uma roupa da própria medida. Foi essa a chave interpretativa que usei em meu trabalho de tradução. A mudança da personagem ocorre, sobretudo, na linguagem: “Comecei a mudar. Em poucos meses perdi o hábito de me maquiar cuidadosamente, passei do uso de uma linguagem elegante, atenta a não ferir o próximo, a um modo de me expressar sempre sarcástico, interrompido por risadas desmedidas. Devagar, apesar da minha resistência, cedi à linguagem obscena”.

A desmedida se fez necessária para que Olga encontrasse sua justa e pessoal medida, uma primeira libertação do corpete linguístico, afrouxar a imagem de mãe e esposa dedicada para ser Outra. A maestria de Ferrante é justamente executar o texto mantendo por um lado a tensão narrativa e por outro a interrupção destes relatos-solilóquios com clareiras de consciência, quase uma ruptura brechtiana. A autora trabalha com o agora da vida de Olga, ou seja, a pós-tomada de consciência do abandono, com o passado napolitano que se presentifica na linguagem e nas alucinações, com o sentimento de estar perdida e à deriva de si, e com os rastros e restos que ajudam na jornada da personagem, como os bilhetes — vestígios de leituras — deixados pela protagonista para si mesma em algum lugar do passado próximo no qual já parecia existir a consciência de um porvir e da iminência de uma ruptura. A escritora Olga sabia de si antes da personagem Olga. O leitor sente-se enredado nesta trama e o tradutor deve nadar contra a corrente, ou seja, manter a capacidade de emergir das águas narrativas e respirar antes de dar a próxima braçada. Assim, como a obscenidade vinha aos lábios de Olga com naturalidade, eu precisava encontrar uma correspondência digna nos dedos enquanto digitava minha reescritura. Precisava manter estes registros para que ficassem evidentes, também em português, as rupturas na linguagem da protagonista. A obscenidade era necessária como uma primeira saída do ser-simulacro, Olga não se deixava enganar pelas belas palavras: “Era só abrir a boca que já sentia vontade de zombar, manchar, sujar Mario e a sua puta.”

A reescrita do tradutor também se expõe ao olhar curioso do leitor, sendo o tradutor veículo do escritor e de sua obra. Ao traduzir Ferrante, o tradutor é veículo de um fenômeno literário mundial do presente. Há de se ter certo despudor para encarar este desafio e muito humor para responder aos leitores que me escrevem, por ventura, nas redes sociais: “Mas você afinal sabe quem ela é? Já encontrou com ela?” ou até mesmo responder aos que cotejam o texto de chegada com o aquele de partida e elogiam ou criticam alguma decisão tomada. Se o despudor fosse maior, sendo eu também poeta além de tradutora, divertir-me-ia inventando narrativas pós-ficcionais. No entanto, me contento com a leitura da coluna da autora no jornal The Guardian, onde ela declara que seus únicos heróis são os tradutores: “Amo particularmente os especialistas na arte da tradução simultânea. Amo-os especialmente quando são leitores apaixonados e propõem eles mesmos a tradução (…) Tradutores transportam nações para outras nações, são os primeiros a considerarem modos distantes de sentir. Até os seus erros são a prova de uma força positiva. Tradução é a nossa salvação: nos retira do poço em que, por total acaso, nascemos.”

Daniel Hahn, tradutor e fundador do prêmio Translators Association, parece concordar com Ferrante em seu artigo no mesmo jornal britânico, ao afirmar que os tradutores são a vanguarda das mudanças literárias. Há a intimidade do autor e seu editor, a intimidade do tradutor e a obra, sua relação com o editor e revisor local; toda uma construção para que o texto se revele e se desvele aos olhos do público de outra nação. Há, portanto, tantas camadas de intimidade na construção, produção e edição de um livro traduzido como os véus de Salomé.