Entrevistas e outras publicações

“Mas há algo de contorno ou travessia no dia”: entrevista com Francesca Cricelli

Cleber da Silva Luz e Sandro Adriano da Silva: Poesia, ainda?

Francesca Cricelli: Poesia sempre, mesmo quando não escrevo. Poesia como forma de estar no mundo em busca de uma palavra, de uma visão, de um encaixe.

Cleber da Silva Luz e Sandro Adriano da Silva: Em “Correspondência entre ausentes”, crônica escrita em março de 2017, ao contar sobre o festival de poesia que participou em Granada, na Nicarágua, você relembra ter comentado o golpe ocorrido no Brasil, no ano anterior, 2016. Você afirma, nesse mesmo texto, que “lutar por um espaço de liberdade e paz é em si um ato político” (p. 25). À vista disso, como você vê o lugar da poesia, e do papel do poeta e da poeta frente a um país assombrado pelo espectro de um governo fascista, genocida e destruidor?

Francesca Cricelli: Penso o quão assustador tornou-se o mundo e o Brasil desde que fiz aquela viagem. Também para os meus amigos escritores que moram na Nicarágua. Certamente não imaginava o quão terrível seriam os anos seguintes. A poesia é sempre matéria de resistência quando não se é um poeta “oficial” de um país. É uma arte pobre, não tem nenhum valor agregado e por essa sua natureza marginal sobrevive a tantas intempéries. Não consigo atribuir um papel nem à poesia nem ao poeta – o que devem fazer sob fascismo? Resistir, denunciar. Sob a democracia? Observar, narrar, ir aonde os olhos não chegam. Dito isto, não acredito muito em poesia engajada. Mas não é possível fazer poesia sem estar atravessado pela política e pela história. Como sujeitos, estamos inseridos num presente e estamos em relação com o nosso passado, sob esse prisma toda poesia é política (em alguma medida) e testemunha um momento histórico. Sinto que a poesia e a leitura em geral tornam-se mais urgentes diante da barbárie que nos assola, tanto como refúgio quanto como lente interpretativa. Eu continuo lendo muita poesia e traduzindo o que posso. Esse seria o momento para traduzir e publicar livros de poesia escritos em outros momentos históricos sob outras ditaduras em outras línguas, fazer um corpo a corpo com essas palavras até encontrarmos as nossas em meio à afasia. Penso em Canto a su amor desaparecido de Raul Zurita.