Salvo Conteúdo entrevista Francesca Cricelli, 2023
o delicado romance Cara paz, de Lisa Ginzburg e magistralmente traduzido por @francesca.cricelli, foi tema do nosso clube de leitura de setembro/2023 e rendeu tanto que procuramos a tradutora para aprofundar pontos que surgiram no encontro.
o livro é construído a partir do ponto de vista de Maddalena, a irmã mais velha. o relato em primeira pessoa faz da narrativa um mergulho nas etapas da própria vida e da relação simbiótica com a irmã, Nina. as duas foram criadas por uma babá francesa, já que o pai e a mãe, cada um com seus motivos, não conseguiram permanecer ao lado delas.
confira abaixo o nosso papo com Francesca.
no clube, alguns participantes pontuaram que as palavras usadas pela narradora eram um tanto rebuscadas. vieram assim no original? a tradução foi literal?
Francesca Cricelli: Fico pensando aqui que as palavras “literal” e “literário” soam tão parecidas mas são bem distintas, ainda mais quando falamos de um romance. Não há tradução literal na literatura, não é possível, por mais próximas que sejam duas línguas, transportarmos uma série de códigos linguísticos de um lado para o outro sem respeitarmos as normas, a naturalidade e a musicalidade daquilo que os tradutores chamam de “língua de chegada”. Há uma língua de partida, a língua em que uma obra foi escrita, e uma língua de chegada, a língua para a qual essa obra é traduzida. Ambos estes textos são considerados “autorais”, autônomos, embora em forte correlação o segundo com o primeiro. Mesmo fora do campo literário, mesmo naquilo que chamamos de tradução técnica, como a tradução de documentos, não é possível traduzir “literalmente”, pois cada país e cada língua exige uma forma própria de dizer algo. Por exemplo, eu moro na Islândia, aqui para qualquer motivo burocrático usamos o nosso kennitala, literalmente número de identificação, algo análogo, mas não exatamente igual, ao CPF (cadastro de pessoa física) no Brasil. Então, essa fantasia que se há sobre a existência de uma tradução literal é algo um pouco juvenil, talvez só exista quando estamos começando a aprender uma língua, começando a traduzir, ainda tentando mapear aquele idioma e traduz-se cada parte do discurso “de forma literal” e em seguida tenta-se encontrar um sentido, algo que soe correto em nossa língua vernacular e então mudamos um tanto, editando aquilo que havíamos escrito num primeiro momento.
Uma tradutora, um tradutor, busca manter o tom informado pelo autor na construção de personagens. Portanto, se as palavras de Maddi, ou Maddalena, soam rebuscadas, há algo que nos é informado a partir da sua linguagem. Quando temos acesso a algum discurso direto de outra personagem – por exemplo, Nina – o que observamos em sua fala? O que isso nos diz sobre ela? E o registro de Mylène ao falar em italiano? Penso aqui, por exemplo, num trecho na página 142, em que a narradora (Maddi) descreve a volta para casa com a irmã e com a tutora após fazerem compras num supermercado. A narradora informa algo sobre essa mulher, Mylène, tutora de Nina e Maddalena, quando diz do seu “virtuosismo” ao usar a língua italiana e em seguida dá uma série de exemplos e expressões idiomáticas: “non se ne esce”, “gatta ci cova”, “non mi fate fessa”. A solução que encontrei foi deixá-las no original e acrescentar uma pequena nota indicando quais seriam os possíveis “equivalentes dinâmicos” em português, também observando que o uso destas expressões denota um conhecimento profundo da língua, um conhecimento íntimo. O que isso nos diz a respeito de Mylène?
Não sei se respondi bem à pergunta, mas tentei dar um pequeno panorama sobre esse ofício, a tradução literária, que é algo que envolve um duplo movimento: o pensamento e a reflexão sobre o que até hoje foi escrito sobre a tradução literária de um ponto de vista teórico, mas também a perlaboração, o trabalho minucioso e cansativo, a construção que corresponde ao colocar uma palavra atrás da outra, rearranjar sintaxes e pontuações fazendo com que o romance de partida continue existindo na língua de chegada, da forma mais natural possível na língua vernacular, sem, porém, apagar traços de estilo próprios de uma autora.
em uma entrevista ao jornal O Globo, a autora falou que aprendeu com a avó, também escritora, a usar as próprias palavras, não enganar o leitor com palavras de outros. isso pode ter a ver com a linguagem mais rebuscada?
Francesca Cricelli: Fui reler a entrevista e trago aqui a citação “O meu ofício”: não enfileirar palavras pescadas “por acaso fora de nós”, enganando espertamente o leitor, mas procurá-las dentro de si”. Depois fiz algo que é muito comum e recorrente no trabalho da tradução literária: consultar dicionários monolíngues. Quanto mais tempo de tradução literária, mais confortável torna-se o gesto de procurar palavras, expressões, quase de forma automática, dentro de um repertório que já existe em nós. Porém, mesmo tendo um domínio profundo das duas línguas (ou mais) nas quais se trabalha, o uso de dicionários monolíngues é fundamental. Ao traduzir, deixamos que ocorra a expansão dos diversos significados de uma palavra, podemos inferir uma interpretação, pois é inescapável interpretar ao traduzir, mas o dicionário sempre abre um leque. Aqui novamente se fala de linguagem rebuscada – vamos dar uma espiada no que o dicionário nos diz sobre o verbo “rebuscar”:
1. buscar, procurar (algo físico) insistentemente, buscar e tornar a buscar, recatar.
2. buscar minuciosamente, coligir, catar.
3. apanhar (frutos que ficaram na planta após a colheita); respigar.
E finalmente, na acepção mais conhecida:
4. vazar em estilo requintado ou excessivamente ornado; burilar.
Enfim, se Lisa Ginzburg fala do conselho recebido de sua avó, a escritora Natalia Ginzburg, “procurar as palavras dentro de si”, talvez isso seja rebuscar, mas no sentido de procurar insistentemente, de buscar e tornar a buscar, de buscar quase fisicamente algo – e não no sentido de as palavras serem excessivamente ornadas, pelo menos, não me parece que o estilo da escrita de Lisa seja assim. Acho que o conselho de Natalia vai mais no sentido de buscar uma autenticidade na voz escrita, de não simplesmente dominar a técnica da escrita, mas ir além, encontrar uma voz autêntica para narrar. Como tradutora, sinto que Lisa alcançou esse objetivo.
como foi traduzir o título do livro, que faz mais sentido em italiano? em algum momento foi pensado outro?
Francesca Cricelli: Não sei se o título faz mais sentido em italiano, certamente em português perdemos esse jogo de palavras, essa sonoridade, pois o título em italiano deixa uma dúvida, uma ambivalência. Contudo, não sinto que isso prejudique o leitor, o jogo com a carapaça está em diversas cenas do romance e é possível intuir essa ambivalência durante a leitura.
e a escolha da capa? você participou de alguma maneira?
Francesca Cricelli: Recebi a foto da capa por parte da editora Simone Paulino, que perguntou minha opinião. Me agradou muitíssimo, pois sou uma grande fã do fotógrafo Luigi Ghirri e sinto que a imagem comunica muito bem algumas questões contidas nesse romance, não é?
qual foi o maior desafio em traduzir esta obra?
Francesca Cricelli: Acho que o maior desafio, como ocorre com diversos livros, é encontrar o tom e o ritmo da escrita no original, às vezes é preciso traduzir umas trinta ou cinquenta páginas até incorporar essas questões, entender as construções, as repetições a preferência lexical, e não se trata apenas de uma compreensão técnica, não se trata apenas de uma análise literária, mas sim de algo mais parecido com a música, como se tivéssemos que ouvir uma música várias vezes até começar a entender seu ritmo, sua cadência, e então podermos reproduzir com outros instrumentos, usando a mesma partitura. É o maior prazer que a tradução literária me provoca, é uma forma de leitura muito profunda, como se dormíssemos agarrados às palavras, sonhando com elas até reproduzi-las.
sobre Francesca Cricelli
poeta, tradutora literária e doutora em Literaturas Estrangeiras e Tradução pela Universidade de São Paulo. descobriu um acervo inédito de cartas do poeta Giuseppe Ungaretti durante sua pesquisa. publicou, entre outros, Repátria (Selo Demônio Negro, 2015) e Errância (Macondo Edições e Sagarana forlag, 2019). traduziu para o português Elena Ferrante, Igiaba Scego, Claudia Durastanti, Lisa Ginzburg e Jhumpa Lahiri, entre outras. vive em Reykjavík, a capital mais ao norte do mundo, na Islândia e é pesquisadora visitante do Center for the Study of Contemporary Women’s Writing (CCWW) da Universidade de Londres.
sobre o projeto Quem Traduziu
Quem Traduziu é um grupo de tradutoras literárias que busca refletir sobre o trabalho da tradução e o seu espaço e reconhecimento no mercado editorial brasileiro. composto por 65 mulheres, o grupo surgiu organicamente no WhatsApp, a partir da associação de algumas tradutoras que procuravam reunir conversas e debates comuns que já estavam acontecendo em diferentes esferas.
sobre Cara Paz
se este é um mergulho na intimidade da vida de duas irmãs – esmiuçando dores, medos, pequenas alegrias e a forma que encontraram de lidar com o abandono – ele também é sobre o desejo e sobre a paz, de um modo muito geral.
o desejo, que move montanhas, mas que também é autocentrado e pode causar tanto mal, é o tema da vida das cinco principais personagens envolvidas, seja o desejo realizado ou o desejo de se realizar.
sobre a autora
Lisa Ginzburg nasceu em 1966, em Roma. escreveu diversos romances, além de biografias e livros de ensaios. com Cara Paz foi finalista, em 2021, do Prêmio Strega, um dos mais prestigiosos da literatura italiana. atualmente vive entre Roma e Umbria.